Nas últimas décadas, o modelo tradicional de família (pai, mãe e filhos) vem sofrendo profundas transformações. Os filhos acostumaram-se a ter duas casas por causa da separação dos pais; mães e pais solteiros passaram a fazer parte de um cenário comum no nosso cotidiano. As mulheres entraram no mercado de trabalho e passaram a sustentar seus lares, quebrando o paradigma do “chefe de família”, que era atribuído só ao homem. Além disso, o movimento gay no Brasil ganhou um ativismo sem precedentes, fazendo com que os homossexuais conquistassem e tivessem o reconhecimento de muitos direitos, dentre eles o de poderem adotar filhos.
Diante de tais mudanças, é notória a tendência de que nas próximas décadas esses novos modelos de família apenas se consolidem, pois trata-se, ao que parece, de “fato social” (Durkheim), pelo que atinge toda a coletividade, de forma impositiva e independentemente da consciência individual.
Entretanto, certa polêmica ainda persiste em relação à adoção de filhos por homossexuais, mesmo que isso já aconteça na prática e tenha se mostrado salutar àquele que passou integrar uma nova família. O problema é que, nessa hora, como acontece muitas vezes quando nos deparamos com alguma novidade, esbarramos num dos grandes obstáculos, senão o maior deles, à evolução humana: o preconceito, que tem por gênese a ignorância. Assim, é fundamental o debate e a troca de experiências sobre o tema, visando à formação de cidadãos conscientes e capazes de superar tais preconceitos.
Até bem pouco tempo, por exemplo, a família era aquela formada pela união matrimonial entre homem e mulher, cujo objetivo era a geração de filhos e a concentração e transmissão do patrimônio. Quando a “Lei do Divórcio” entrou em vigor no Brasil, no final da década de 1970, os casais que optavam por ele eram estigmatizados. Por isso, muitas famílias mantiam um casamento de fachada, em que o casal separado continuava morando sob o mesmo teto, mas dormindo em camas separadas. Na mesma época, os filhos tidos fora do casamento eram considerados “ilegítimos” (bastardos) e sofriam fortes restrições em seus direitos, o que só acabou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando foram equiparados aos filhos legítimos.
No tocante a adoção por pares homossexuais (o correto é dizer “par” e não “casal”, assim como no baralho: um par de damas, um par de reis, etc) - um dos direitos civis reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) - levanta-se a questão do preconceito que a criança sofrerá, por exemplo, na escola, por ser filha de pais nessas condições. Entretanto, estudos apontam que não há motivos para o receio, visto que a orientação sexual dos pais não determina o comportamento das crianças. É só lembrar que muitos gays são filhos biológicos de pais heteros.
A psicóloga Charlotte J. Patterson, professora de psicologia da Universidade de Virgínia (EUA), e autora de vários livros sobre o comportamento humano, analisou as relações de pais e mães homossexuais e as evidências da influência na identidade sexual, desenvolvimento pessoal e relacionamento social em crianças adotadas. Os resultados mostraram que tanto os níveis de ajustamento maternal quanto a autoestima, desenvolvimento social e pessoal das crianças foram compatíveis com o de crianças criadas por um casal tradicional. Além disso, após 30 (trinta) anos de pesquisas, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) expediu, em 2002, um comunicado informando que filhos criados por pais gays ou lésbicas têm o mesmo desenvolvimento que os outros.
No Brasil, a adoção passa por um processo muito rigoroso de cadastramento do(s) adotante(s), em que ele(s) precisa(m) cumprir vários requisitos e apresentar vários documentos, tais como: comprovante de renda mensal, atestado de sanidade física e mental, atestado de idoneidade moral assinado por duas testemunhas, e atestado de antecedentes criminais, tudo isso acompanhado de perto pela Justiça, visando um ambiente familiar saudável ao(s) adotando(s). Superada essa etapa, existe um período de avaliação no relacionamento, determinado pelo juiz, denominado “estágio de convivência”. Ou seja, não é qualquer pessoa/família que pode adotar, seja ela formada por hetero(s) ou homossexual(ais).
Dessa forma, o suposto “receio” de certas pessoas me leva a fazer a seguinte indagação: quem nessa vida está imune a algum tipo de discriminação? Sofre o negro, o adotado, o pobre, o policial, o gordo, o feio, o rico, o magro... todo mundo! Pois é tudo uma questão de contextualização. Por isso, mais importante do que a orientação sexual dos pais adotivos é a habilidade deles em proporcionar ao adotando um ambiente carinhoso, educativo e estável, sendo injusto (e até inadmissível) privá-lo disso, se o motivo é apenas de caráter preconceituoso.
Nunca é demais ser empático. Antes de julgar, coloque-se no lugar do outro. Tente sentir o drama de viver em um orfanato, visite algum, se ainda não conhece, e sinta na pele aquela atmosfera de abandono. Talvez assim você entenderá que lá não existe liberdade plena e nem, muitas das vezes, carinho ou amor de verdade. Onde há, sim, muitos sonhos e poucas realizações. Os órfãos se veem obrigados a conviver diariamente num misto de esperança e agonia. E, como se sabe, por inúmeros motivos, o sonho de integrar uma nova família não se concretizará para muitos deles. Mais amor, por favor.
Além disso, a idade, em constante avanço, faz com que essas crianças vejam, a cada dia, a chance de alguém as escolher esvair-se. E, o pior, caso não consigam um lar, esse drama persistirá até a maioridade chegar, quando serão obrigadas a retirar-se da instituição, encontrando-se novamente abandonadas. E são milhares de crianças e jovens à espera de um lar nesse exato momento!
Já finalizando, vou fazer um relato chocante: esses menores abandonados em orfanatos são filhos de pais heterossexuais! O que será que deu errado?! Eles não são os pais ideais? Desnecessário dizer, então, que não existe família perfeita.
Portanto, não discrimine os pais homoafetivos, pois eles podem ser a família que todos aqueles seres humanos institucionalizados anseiam ter, e é nosso dever moral ajudá-los a conseguir isso. Avante!
por Luciano Caettano