Dizem que amigo secreto é aquele evento em que você dá um Iphone e ganha um pedaço de cana.
Então senta que lá vem a história...
Quando eu estava na segunda-série, o ano letivo encerrando, a nossa professora sugeriu que brincássemos de “amigo secreto”. Na época, eu estudava na E. E. Padre Eloi e tínhamos, em média, nove anos de idade. Ficamos todos empolgados com a ideia. A adesão foi total. Ela anotou os nossos nomes em uns papeizinhos e fez o sorteio. Eu tirei o Raphael (era assim mesmo que escrevia o nome dele, com ph). Eu estava achando tudo muito divertido, até então.
Passados alguns dias, saí com a minha mãe para comprar o presente do meu amigo. Vai daqui, vai dali e achamos um presente top naquelas lojinhas do Paraguai: Uma espada do Jaspion, com direito a luzinhas coloridas e ruídos para a hora do “combate”! Lógico que ele iria adorar.
E eis que chegou o dia da revelação. A professora foi a primeira a revelar o seu amigo secreto, para dar o exemplo. Riamos muito de tudo aquilo. E assim foi, até que chegou a minha vez. Aí eu fiz uma gracinha e logo descobriram que era o Raphael. Pelo formato do embrulho que eu carregava, não estava difícil adivinhar o que era. Eu acho que ele já suspeitava o que receberia. Recebeu-o, desembrulhou e instantaneamente estampou no rosto aquele sorriso de felicidade: “Muito obrigado! Ela é muito massa!”, agradeceu-me o amigo, e saiu todo empolgado para brincar.
Fiquei feliz por ele, mas eu não escondia a ansiedade em receber o meu presente também. O que será que eu iria ganhar? Um carrinho? Um boneco (que a gente chamava de hominho) dos Comandos em Ação? Uma bola de futebol? “Bola não é. Não tem nenhum embrulho redondo por aqui”, especulava eu. Que ansiedade matadeira...
Dali a pouco, um dos meus colegas, o Matheus, meio sem-graça (ele era muito tímido), começou o seu discurso de revelação: “O meu amigo tem o cabelo lisinho, parece um capacete; ele é magrinho, flamenguista, inteli...” “É o Luciano!”, gritaram. E era mesmo. Levantei depressa e fui lá buscar o meu presente. Mas tinha algo estranho. Logo notei que não havia nenhum embrulho nas mãos dele. Fui aproximando e, de repente, o Matheus colocou a mão no bolso e tirou uma sacolinha do supermercado “Casa Lopes”, dentro dela havia uma caixinha embrulhada num papel de carne. “O que será isso?”, pensei receoso. Desembrulhei aquele pacote com cheiro de linguiça e era a por#& de um sabonete Lux Luxo. Sim! Um sabonete! #fiqueiputo
Peguei aquilo, tentando disfarçar a minha profunda decepção e vontade de cometer um assassinato, mas pensando: “Pu#$ que pariu, Matheus! Que po#%a é essa?! Um sabonete, cara?! Não acredito!” Mas, com muito esforço, e o pensamento em Jesus, consegui dizer “obrigado”, e fui para o meu cantinho. Ironicamente, aquele sabonete limpou toda a minha alegria de estar ali. Não tinha como não ficar pensando em ter dado uma espadinha do Jaspion e ganhado um sabonete! Pu#$ que pariu! Que azar! #traumatizado
Na verdade, eu sabia que o Matheus era muito pobre. Todos nós sabíamos. Ele era tão pobre que não tinha nem tênis para ir para a escola. Você não imagina o quanto era estranho ver uma criança alta e magra correndo no recreio de camiseta regata, short e botina. O Matheus tinha doutorado em pobreza. O material escolar dele era todo doado pela prefeitura. A gente andava pela sala de aula e via cadernos “Tilibra”, e outras marcas, e, de repente, deparava com alguns da “Secretaria Municipal de Educação de Araguari” embrulhados em sacos de arroz “Tio João”, de cinco quilos. Eram os do Matheus. Sinceramente, ele ia na escola mesmo era por causa da merenda e, por acaso, ele estudava enquanto esperava o intervalo. #prontofalei
Mas na hora eu só pensava: “Matheus, Matheus, a minha vontade era de socar esse sabonete no seu c...” #queódio A vontade de rir era grande, mas a de chorar era maior.
Pra piorar a minha situação vexatória, um dos meus colegas gritou do outro lado da sala: “Luciano, o Matheus te chamou de fedido!”, e a galera caiu na risada. Naquela época, acho que nem existia a palavra “bulling”. Que humilhação, amigo!
Acabada a tragédia a festa, era a hora deu ir embora. A escola ficava a uns dois, três minutos da minha casa, a pé. Mas nesse dia eu levei uns quinze. Como encarar minha mãe, que saiu comigo no dia anterior e andou horas e horas a fio para escolher a merda daquela espadinha, para eu chegar em casa com um sabonete? Eu não estava preparado psicologicamente para aquilo. Mas eu tinha que encarar os fatos. Realidade cruel.
Soou o sino, naquela época era sino mesmo, daqueles de igreja. O “tim, tim, tim” bateu na alma! Peguei a minha mochila do Rambo e fui embora.
Durante a caminhada, fui matutando: “Ai, meu Deus, tomara que não tenha ninguém lá em casa... Minha irmã vai me zoar tanto. A minha mãe não vai acreditar que eu ganhei isso...” Eu estava me sentindo constrangido, com vergonha de mim mesmo, sem ter feito nada de errado. Não sei explicar. Era aquela vergonha do tipo chegar de moto-taxi na porta da festa e a galera te ver. Eu andava cabisbaixo e sentia como se todo mundo estivesse olhando para mim e rindo: “Olhá lá! Lá vai o menino que deu uma espada e ganhou um sabonete! Que idiota! kkkkkkk.”
Cheguei em casa e, sem a menor pressa, abri o portão, depois a porta, suspirei fundo e entrei. A minha tia de São Paulo, que vem uma vez na vida e outra na morte!, estava lá. Ela tinha vindo passar o Natal com a família. Era o meu carma! Qual a primeira pergunta que a minha mãe fez? Claro! “E o amigo secreto, como foi? O que você ganhou?” #acasacaiu
Na hora, eu pensei: “Vou mentir. Vou falar que o menino esqueceu o presente e que vai me dar depois.” Mas eu não era de mentir. Isso não iria dar certo. Então fui direto ao assunto: “Uai mãe, o Matheus saiu comigo. Ele me deu esse presente aqui”, eu disse exibindo o sabonete para elas. A minha tia viu aquilo e já disparou a rir. Parecia uma gralha esquizofrênica. “Vai enfartar véia”, pensei. #eutavaputo
A minha mãe, obviamente, também não aguentou e caiu na risada. Ria de chorar. A minha irmã, ouvindo aquela algazarra, veio ver o que estava acontecendo. Quando eu contei, ela começou a rir como se não houvesse amanhã. E a danada ainda comentou: “Bem que ele podia ter dado a bucha junto, né?!” E “kkkkkkkkkkk” para todo lado. Aí eu não aguentei e tive que rir também. Mas eu estava rindo para não chorar... #quedrama
Mas passados todos esses anos, mais de vinte!, fica uma certeza: o trauma foi superado. Assim, eu lembro daquele dia e meus olhos enchem de lágrimas, me bati uma bad monstra, mas eu superei já. É serio... Aquele desgraçado menino não teve culpa nenhuma, coitado. Que ele tenha tido alergia na pele por causa de sabonete e morrido de coceira tenha dado a volta por cima e saído daquela condição financeira terrível que ele se encontrava. Obrigado, Matheus. Graças a você, eu adoro brincar de amigo secreto... #sqn