Na Idade Média, quando geladeira e freezer sequer eram uma ideia, carnes de diferentes animais eram conservadas por meio de variados métodos, como salga, cura, fermentação e defumação. O propósito era o de que os alimentos não se deteriorassem com a ação do tempo.
A esse conjunto de técnicas foi dado o nome de charcutaria, termo do francês que faz junção entre as palavras “chair” (carne) e “cuit” (cozida). Fato é que, séculos depois de sua origem, e mesmo com a chegada dos refrigeradores, a charcutaria foi sendo aprimorada a ponto de seu objetivo inicial dar lugar a outro: a busca por sabores e texturas complexas, alcançada por meio de processos lentos e cuidadosos.
“A charcutaria é a arte de se preservar a carne por meio de alguns protocolos de conservação”, define Rafael Bocaina. Consultor e cozinheiro, ele trabalha com charcutaria há 13 anos e comanda uma fazenda em Silveiras, no interior de São Paulo, onde cria porcos de raças exclusivamente brasileiras.
“Entre esses métodos, a defumação é considerada o mais antigo, precedendo até mesmo a salga. Outros protocolos importantes incluem a secagem, a conservação em gordura e a preservação em meio ácido, como o vinagre. No entanto, esses protocolos raramente são aplicados isoladamente: normalmente, um alimento defumado também é salgado, assim como algo salgado pode passar por um processo de desidratação”, explica.
O porco é, geralmente, o animal mais aplicado à charcutaria devido ao seu alto teor de gordura, mas tais técnicas também são utilizadas em outros tipos de carne, como a bovina, a de caça, a de peixe e até a de frango.
“No Brasil, sofremos inicialmente uma grande influência ibérica, e, a partir da segunda metade do XIX, uma forte influência italiana. Os italianos, herdeiros do Império Romano, tinham o porco como base da sua subsistência, e muitas receitas da charcutaria moderna remontam a esse período”, salienta Bocaina. Da charcutaria, produzem-se produtos como linguiça, salame, presunto, bacon, mortadela, copa, salsichas, carne de sol, entre outros.
A produção da charcutaria em Minas Gerais bebe na influência europeia, mas também tem identidade própria, utilizando de ingredientes típicos daqui. Esse é caso da Charcuteria Sagrada Família. Localizada em Montes Claros, a produção se baseia no torroir próprio da região para a fabricação de produtos, como bacon, salame, porchetta, linguiça e bresaola.
“Nossa abordagem é totalmente autoral. Incorporamos ingredientes regionais como rapadura, cachaça, baru, pimenta-de-macaco e buriti. Além disso, trabalhamos exclusivamente com suínos e bovinos da região do Norte de Minas”, descreve o proprietário, Samir Atallah Haun Filho.
Algumas produções de bacon ao redor do mundo utilizam açúcar mascavo e uísque no processo de cura, mas na Charcuteria Sagrada Família os ingredientes escolhidos para temperar o embutido são a cachaça de Salinas e rapadura de Taiobeiras; o salame recheado, comumente feito com pistache, é produzido com castanha de baru, fruto do baruzeiro, árvore nativa do cerrado.
“Todos os nossos insumos vêm de uma rede de parceiros da agricultura familiar. Temos um vínculo forte com os povos ribeirinhos e comunidades do agreste”, destaca.
Para adquirir os produtos da charcutaria, é possível fazer compras pelas redes sociais do estabelecimento e no site charcuteriasagradafamilia.shop. Na avenida no Contorno, também há uma unidade de distribuição.
Da zona rural de Formiga, na Fazenda Padre Trindade, no Sul de Minas Gerais, Mariana Ribeiro também se preocupa em criar uma charcutaria com identidade própria. É ela mesma, ao lado do irmão Felipe, que cria os porcos, todos de raça brasileira e caipira. Além disso, os animais são aproveitados do focinho ao rabo.
“Processamos o animal de forma integral, evitando desperdícios e respeitando a matéria-prima. Nosso trabalho na Beira Mato valoriza o porco caipira e utiliza técnicas como defumação em lenha frutífera, cura prolongada e maturação controlada”, explica Mariana.
Como os porcos são aproveitados em sua totalidade, deles são produzidos produtos frescos (linguiça caipira, carne de lata, banha, torresmo, croquete e alheira); defumados (bacon, linguiça, costelinha, lombo e pezinho); e curados (salames, coppa, culatello, lonza, guanciale, pancetta e lardo).
“Nosso processo é todo artesanal: criamos o porco, enviamos para o abate e recebemos a carcaça para processamento. Cada peça segue um fluxo específico, a barriga vira bacon, a copa se torna copa maturada, o lombo é defumado, e assim por diante”, diz.
A maior parte dos produtos da Beira Mato vai para restaurantes e empórios, mas Mariana também consegue enviá-los via Sedex, por meio de pedidos feitos em suas redes sociais.
Produção em BH e região
Belo Horizonte também tem intensa produção – e venda – de produtos da charcutaria. Pertinho da capital, no Jardim Canadá, em Nova Lima, funciona a Charcutaria Local. Com descendência italiana, o proprietário Bruno Ferrari sempre prezou por produtos com a cara de Minas.
“Busquei conhecimento e técnicas na Itália, mas sempre com o objetivo de adaptá-las e incorporar ao máximo os produtos mineiros no meu trabalho. Foi essa mentalidade que me levou a investir na criação própria de suínos. Aos poucos, estou buscando ter controle total sobre tudo o que produzo, e meu objetivo é chegar ao ponto de cultivar até mesmo meus próprios temperos na fazenda, garantindo um processo 100% artesanal”, espera Ferrari.
Hoje, o foco das vendas está no fornecimento para restaurantes, cafeterias e empórios de Belo Horizonte, mas também é possível comprar produtos como salame, copa lombo, lombo curado, presunto tipo parma (curado por até 18 meses), presunto Speck, entre outros.
“No início, trabalhávamos com carne bovina, mas com o tempo, percebi que o grande protagonista da charcutaria é o suíno. A riqueza de cortes e a versatilidade da carne nos permitiram explorar técnicas tradicionais e criar produtos de alta qualidade”, indica.
Já no Biella 66, os clientes podem fazer o pedido pelo Instagram e buscar os produtos no Santo Antônio, bairro onde nasceu e cresceu o proprietário, Severino José Catella Junior. Ele se interessou pela charcutaria na época da pandemia, e, desde então, não parou mais de produzir.
“O meu processo é artesanal, pequena quantidade com alta qualidade”, garante. Na esteira de produção da Biella 66, estão os defumados, maturados e frescos. Nessa lista, entram copa lombo, lombinho, filé de frango, picanha suína, bresaola e linguiças variadas, como a linguiça Marroquina: “criação minha, parece uma Kafta”, destaca Severino.
No Prado, funciona a Charcutaria Mantovani, aberta para o público todos os dias da semana. Por lá, o proprietário, Douglas Mantovani, utiliza três métodos principais: a defumação, a maturação e a fermentação.
“A maturação é um dos processos mais utilizados em nossa produção. É realizada em câmaras frias com ambiente rigorosamente controlado, onde monitoramos a temperatura, umidade e ventilação. Utilizamos também o mofo Penicillium, que forma uma camada externa protetora, funcionando como uma barreira natural contra mofos indesejados”, aponta Mantovani.
A carne suína é a principal matéria-prima utilizada na Charcutaria Mantovani, devido à sua versatilidade. “O suíno oferece uma ampla variedade de cortes, e tanto sua carne quanto sua gordura são indispensáveis para a produção de charcutaria artesanal de qualidade. Além da carne suína, também trabalhamos com carne bovina e salmão, ingrediente nobre com o qual produzimos o tradicional gravlax, um produto sofisticado”, afirma. Os produtos com maior saída na charcutaria são copa, a lonza, o guanciale e o salame tipo italiano.
ENDEREÇOS E REDES SOCIAIS
Para fazer pedidos ou ir até uma das charcutarias, consute as redes sociais:
- Charcutaria Local (@charcutarialocal)
Rua Ontário, 198, Jardim Canada, Nova Lima
- Charcutaria Sagrada Família (@charcuteria_sagrada_familia)
Av. Santos Guimarães, 815, Funcionários, Montes Claros
- Beira Mato (@beiramato_)
Fazenda Padre Trindade, zona rural de Formiga
- Biella 66 (@biella66br)
Rua Marquês de Maricá de maricá, 297, Santo Antônio
- Charcutaria Mantovani (@charcutariamantovani)
Rua Oeste, 262, Prado
Fonte O tempo