Trazido para o país por brasileiros, como Charles Miller e Oscar Fox, que foram ao Reino Unido para estudar e trouxeram consigo bolas nas bagagens, o futebol era apenas praticado pela elite branca. A história começa a mudar quando clubes como a Ponte Preta, o Bangu e o Vasco têm negros como protagonistas em suas equipes. Confira!
Ponte Preta
Fundada em 11 de agosto de 1900, a Associação Atlética Ponte Preta teve negros entre seus criadores, algo impensável na época para uma modalidade composta pela classe alta das fábricas. A história aponta que Miguel do Carmo foi um dos fundadores do clube e entrou em campo, no mesmo ano do surgimento da equipe, para defender as cores da Ponte.
Em reportagem para a Folha de São Paulo, o historiador José Moraes dos Santos Neto contou que Miguel do Carmo era um ferroviário que jogou pela Ponte Preta até 1904, quando foi transferido pela Companhia Paulista de Campinas para Jundiaí. O nome dele consta nas escalações do time, mas não foram encontrados registros fotográficos do fundador do clube com uniforme e chuteira.

Carteira profissional de Miguel do Carmo. Fonte: Wikipedia.
José Moraes foi responsável por juntar todos os documentos e elaborar um ofício à FIFA para que a Ponte fosse reconhecida como a primeira democracia racial do futebol brasileiro. A resposta da entidade foi positiva, mas não decisiva.
O historiador desconfia que Alberto Aranha, outro fundador do clube, também era afrodescendente, pois haviam duas famílias Aranha em Campinas, uma no bairro Ponte Preta, de negros, e outra em Cambuí, região nobre.
A dúvida aumenta porque Alberto pode ser parente de Benedito Aranha, contador negro que atuou no clube a partir de 1908. José Moraes explica a falta de documentação com o fato de que apenas neste ano citado a imprensa começou a cobrir o futebol. O texto abaixo faz parte da ata de fundação da Ponte Preta, com a escrita original, e pode ser lido, por completo, clicando aqui.
“No dia 11 de agosto de 1900, em um terreno baldio, à sombra de duas paineiras, realizou-se uma reunião convocada pelos senhores Miguel do Carmo (Migué), Luiz Garibaldi Burghi (Gigette) e Antonio de Oliveira (Tonico Campeão), para tratar da fundação de um club de foot ball”.(...)
“O senhor Miguel do Carmo pediu ao senhor Pedro Vieira da Silva que continuasse os trabalhos como prezidente da nova Associação. Com a palavra o prezidente eleitto mandou que se fizesse a eleição dos outros cargo da directoria e que foi eleitta por aclamação, a seguinte directoria: prezidente: Pedro Vieira da Silva, secretario Alberto Aranha, thezoureiro Miguel do Carmo, procurador Antonio de Oliveira, fiscal de campo Luiz Garibaldi Burghi.”
O clube surge em um bairro popular e operário, com negros entre os fundadores. O preconceito fez com que os adversários chamassem os pontepretanos de macacos e macacada. A ofensa foi transformada no símbolo do clube: macaca é a mascote e o apelido da Ponte Preta.
Bangu
O Bangu teve a sua origem dentro da Fábrica da cidade, com funcionários que vieram da Europa para trabalhar e já chegaram ao Brasil falando sobre o futebol. Segundo o site do clube, o escocês Thomas Donohoe, também conhecido como seu “Danau”, foi o responsável por trazer a primeira bola para Bangu e, ao que tudo indica, esta foi a primeira do Rio de Janeiro.
Com a chegada de outros materiais esportivos vindos de Londres, o futebol era praticado na cidade em uma área cedida pela companhia Progresso Industrial do Brasil. Como o novo esporte estava fazendo sucesso, Andrew Procter sugeriu a fundação de um “club” juntamente com outros funcionários estrangeiros. Então, no dia 17 de abril de 1904 surge “The Bangu Athletic Club”.
De acordo com o livro “O negro no futebol brasileiro”, de Mário Filho, o Bangu fez sua estreia no futebol em junho de 1904 diante do Rio Cricket em Icaraí. Luís Gaspar e Augusto Alvarenga foram dois brasileiros brancos chamados para completar o time. A equipe mesmo só foi montada um ano depois, com as presenças de cinco ingleses, três italianos, dois portugueses e um brasileiro: Francisco Carregal.
Filho de pai branco, português, e mãe brasileira, negra, Francisco, tecelão na fábrica, havia caprichado na maneira de se vestir para passar o mais desapercebido possível diante de tantos estrangeiros brancos. Havia comprado tudo novo para o jogo, como as meias de lã e o calção. Foi assim que Mário Filho descreveu a foto que está no topo desta matéria:
“Francisco Carregal aparece na fotografia em primeiro plano, de pernas cruzadas, segurando a bola. Desenhada na bola, a giz, uma data da fotografia do match e as iniciais do Bangu, sem o tê do The. Um bê, um a, um cê, em letras maiúsculas. E uns números, zero, cinco, traço, cinco, traço, quatorze. Primeiro o ano, 1905, depois o mês de maio, depois o dia, quatorze. As botinas travadas de Francisco Carregal, novinhas em folha. Se não novinhas, engraxadas de manhã para o jogo”.
A imagem é um registro histórico da inserção de um jogador negro no futebol brasileiro. Nesse dia, em 14 de maio de 1905, o Bangu venceu o amistoso contra o Fluminense por 5 a 3. Como ressalta Mário Filho em sua obra, Francisco nunca teria espaço no time adversário. Para jogar no Fluminense era necessário ser chefe de firma, funcionário de alguma grande empresa ou ser de uma família de classe alta.
Em 1906, a Liga Metropolitana organizou o 1º torneio carioca de futebol. Francisco estava no segundo time do Bangu, enquanto outro jogador negro, o goleiro Manuel Maia, estava na equipe principal. Mesmo enfrentando muita resistência, o clube continuou com o atleta, mas a organização do campeonato fez uma resolução no dia primeiro de maio de 1907 que proibia o registro "como atleta amador as pessoas de cor”.
Como resposta, o Bangu se desligou da liga. Em 1911, na segunda divisão, o clube foi campeão com quatro negros e seis operários em seu elenco.
Vasco
O Club de Regatas Vasco da Gama surgiu em 18 de agosto de 1898 com brasileiros e portugueses interessados em fazer uma agremiação destinada à prática do remo. Em 1904, de acordo com o site do clube, Cândido José de Araújo foi eleito o primeiro presidente não-branco na história de alguma equipe esportiva.
Candinho, como era conhecido, ficou no cargo por dois mandatos, sendo presidente do Vasco de agosto de 1904 até o mesmo mês de 1906. Neste período, o clube conquistou o seu primeiro título: o campeonato de remo do Rio de Janeiro. O livro “Memória social dos esportes” destaca a importância que o Cândido teve tanto para a parte administrativa quanto para a união dos associados. Foi o responsável por criar o tradicional “chá das sextas-feiras” que teve até a presença do prefeito da época, Francisco Pereira Passos.
O futebol foi instituído no Vasco em 1915 com o presidente Raul da Silva Campos. O primeiro título no campo aconteceu em 1922, quando o time conquistou a Série B da Liga Metropolitana. Com isso, disputou uma partida com o São Cristóvão, último colocado da Série A, para decidir quem ia participar da elite do campeonato carioca no ano seguinte. A partida terminou 0 a 0 e foi o Vasco que subiu.
A partir de 1923 começou a ser escrito o capítulo mais emblemático na história do clube. O Vasco conquistou o campeonato carioca do ano citado com uma campanha de 11 vitórias, dois empates e uma derrota. Com o uniforme preto, sem a faixa diagonal, de gola branca e com uma cruz vermelha, a equipe composta por muitos negros e mulatos quebrou a hegemonia dos times compostos apenas por brancos (América, Fluminense, Botafogo e Flamengo).

O uruguaio Ramón Platero era o técnico do Vasco. Fonte: História do futebol.
O sucesso do time composto por negros, mulatos, brancos, pobres e recrutados no subúrbio havia incomodado as equipes da classe alta. Em 1924, Fluminense, Botafogo e Flamengo, com apoio do Bangu e do São Cristóvão, criaram a Associação Metropolitana de Esportes Athléticos (AMEA) e abandonaram a Liga Metropolitana. O estatuto da nova entidade proibia a inscrição de jogadores sem profissão definida e analfabetos. De acordo com o censo de 1920, a taxa de analfabetismo entre as pessoas com cinco anos ou mais era de 53,4% no Rio de Janeiro.
Entre os artigos do novo estatuto, estava estabelecido que o atleta só poderia ser inscrito se tivesse seu nome completo informado pelo clube, a residência atual e a anterior, o mesmo com a profissão, o lugar onde desempenha as funções, além no nome do atual e do antigo chefe. Os jogadores que tivessem seu sustento a partir de trabalhos braçais com predomínio da força física não poderiam participar do campeonato. Também havia ficado definido que os clubes sem estádio estavam vetados.
Diante de todos esses fatores, 12 jogadores do Vasco não poderiam ser inscritos, todos negros e operários. O clube recusou a proposta da nova instituição e, por meio do presidente da época, José Augusto Prestes, escreveu uma carta histórica contra à discriminação:

A carta foi refeita pelo Vasco, mas o conteúdo é o mesmo da original. Fonte: Site do Vasco.
O Vasco da Gama se mobilizou e juntou forças para construir seu próprio estádio em menos de 12 meses. Por meio da ajuda dos operários, de doações e de um programa de sócio torcedor, o clube teve condições de inaugurar no dia 21 de abril de 1927 o que era o maior estádio da América do Sul.
A união que a Ponte Preta, o Bangu e o Vasco tiveram para resistir, apoiar e mostrar a importância dos negros é o que precisa ser resgatado na sociedade contemporânea. O #TBTesportivo de hoje foi apenas uma pequena maneira de mostrar o quanto muitas pessoas já batalharam pela igualdade social e racial, mas agora, em pleno 2020, estamos colocando tudo a perder.
Em especial, dedico este texto ao meu grande amigo, Richard Militão Rocha. Vidas negras importam e muito.